o conto que não queria nascer
era uma vez um conto. era um conto muito especial, este conto, porque não queria nascer. estava para lá, no lugar onde os contos estão antes de serem contados achando que ainda não estava pronto, que lhe faltava uma vírgula, um assunto. quando algum velho à volta da fogueira se ajuntava a si próprio para começar a contar um conto que ainda não conhecia, os contos por nascer debruçavam-se todos lá desse lugar e espreitavam pensando como podiam escorregar para a boca e para as mãos daquela pessoa, mas o conto que não queria nascer nunca se assomava. estava sempre perdido a vaguear atrás de uma flor, ou então a pentear as palavras. achava bonitas as palavras que ele tinha, muitas eram pra cima de três sílabas, uns tantos adjectivos fulgurantes e alguns advérbios ansiosos. como o conto que não queria nascer era distraído deixava as palavras andarem para ali ao rebuliço numa coisa sem jeito nenhum: uma vez foi dar com ele e tinha as palavras todas divididas por facções. os verbos de um lado, muito dinâmicos – CORRÊSSEMOS, GRITEM, ANDARILHANDO, INSURGIDO, e do outro os substantivos ensimesmados – GALO, ÁRVORE, CABEÇA, MÚSICA. As preposições tentavam acalmar os ânimos e fazer as ligações, mas um grupo de interjeições começou a fazer uma torcida amontoando-se em APOIADO! BRAVO! VIVA! acirrando ainda mais os ânimos. nessa altura o conto ficou muito zangado com as palavras, que aquilo assim não fazia sentido nenhum. quis saber onde é que estavam as frases, mas percebeu que elas tinham combinado fazer uma excursão porque aquele conto não as levava a nenhuma conclusão. assim, naquela madrugada tinham-se desembaraçado das palavras, apanharam a camionete das sete e foram feitas malucas procurar um cabimento que valesse a pena. Isto disse-lhe um advérbio que tinha ficado para o fim, desoladamente e as tinha visto partir pelo canto do olho.felizmente os parágrafos ainda estavam por ali, mas agora estavam também eles consternados com as palavras por ali à solta. melhor fora que não se misturassem porque as palavras dos primeiros parágrafos são sempre mais astutas, são as que querem logo aparecer, e as dos últimos são mais serenas e conscienciosas. o primeiro parágrafo ainda tinha reunidas as primeiras palavras: “era uma vez um conto. era um conto muito especial, este conto, porque não queria nascer.” eram duas frases que tinham logo gostado de estar ao pé uma da outra e achando que era desperdício, não quiseram partir com as outras. então o conto que não queria nascer tomou coragem e segredou-lhes uma intenção de continuar. das duas frases nasceu uma terceira, com o desejo do conto e o amor do parágrafo. e chamadas por pela música que aparece entre o desejo e o amor as palavras lá se acalmaram e foram parando de achar coisas umas sobre as outras. o galo adormeceu debaixo da árvore, encostando a cabeça que antes se tinha insurgido. “seria bom que corrêssemos!” diz ainda uma palavra assustada, antes que as ideias gritem… mas logo percebeu que o melhor era confiar, andarilhando por aí. e ia-se já fazendo tarde quando as frases voltaram na camionete das sete, vinham cansadas da viagem mas não encontraram sentidos nenhuns onde pudessem ficar, porque já estavam todos ocupados e não tinham tempo a perder com frases sem palavras. e elas lá perceberam que o melhor era aconchegarem-se umas com as outras com espaço e sensibilidade, e não nos bancos de dois lugares da camionete das sete. sairam então desdobrando-se pelo conto e estavam tão contentes de se envolverem com as palavras que nem repararam que o conto se ia debruçando de lá de onde os contos estão antes de nascer, e ia caindo nos lábios de um velho que esfregando as mãos começava assim: “era uma vez um conto. era um conto muito especial, este conto, porque não queria nascer…”

margarida agostinho




.